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Sobrevivente do massacre de Realengo ainda espera voltar a andar

Último Segundo
“Espero conseguir dar uns passos até lá”, diz a jovem Thayane, que perdeu os movimentos das pernas e irá completar 15 anos em julho.
“Ela está treinando para dançar a valsa de pé”, diz com um sorriso Andreia Tavares, mãe de Thayane Tavares, que irá completar 15 anos no dia 25 de julho. Uma das crianças sobreviventes do massacre na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona norte do Rio de Janeiro, ocorrido no dia 7 de abril de 2011, Thayane foi alvejada quatro vezes por Wellington Menezes de Oliveira, o ex-aluno que invadiu o colégio armado, matando 12 crianças e ferindo outras 12.
Foi um massacre sem precedentes no Brasil. Dez das vítimas eram meninas. Todos os mortos tinham entre 12 e 14 anos. Cercado por PMs, Wellington se matou com um tiro na cabeça, segundo a polícia. Aluna da turma 1801, que reuniu a maior parte das crianças atingidas durante uma aula de português, Thayane se protegeu colocando o braço esquerdo na frente da cabeça, o que lhe rendeu uma fratura exposta no membro. Em seguida, tentou fingir estar morta.
Entretanto, quando o atirador passou pela menina, esbarrou em uma das pernas de Thayane, que abriu os olhos. Ao ver que a menina continuava viva, Wellington disse: “Você ainda não morreu? Que pena! Tão bonitinha. Então vai morrer agora”. Em seguida, disparou três vezes contra a estudante. As balas comprometeram órgãos importantes, como o estômago, e atingiram a medula da menina, deixando-a paraplégica. “O que passei lá dentro não dá para esquecer”, diz a jovem ao iG.


Praticante de salto a distância, Thayane foi quem avisou a mãe que não poderia mais competir. “Ao sair da cirurgia no Hospital Estadual Albert Schweitzer, ela disse que me amava e respondi que ficasse quietinha porque precisava se recuperar logo, pois todos os amigos a estavam aguardando do lado de fora para vê-la competir e se tornar uma campeã”, contou Andreia. Ao ouvir as palavras da mãe, Thayane afirmou que não poderia mais, porque não estava sentindo as pernas.
Luta
À época Andreia era comerciante, mas, desde que a filha passou a andar em uma cadeira de rodas, não pôde voltar a trabalhar – ela também é mãe de Tamires, de 12 anos, e Tainara, de 8 anos. Andreia diz que sua vida virou de cabeça para baixo, mas “está disposta a lutar”. “A ajuda de custo que tenho é de R$ 700. Não tenho mais renda nenhuma. Você não paga conta, faz mercado e se veste com R$ 700, ainda mais com três filhas”, explica Andreia, se referindo ao valor que recebe mensalmente da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS).
“Parte da verba de ONGs conveniadas à Prefeitura do Rio são destinadas a esse tipo de rubrica, ou seja, para auxílio social em situações provisórias ou emergenciais”, informou ao iG por e-mail a assessoria da SMAS. “A Sra. Andreia Tavares recebe o valor mensalmente, pago em cheque, e sempre assina recibo. A entrega do cheque é feita em casa, por uma questão de comodidade, devido à situação em que a família se encontra”, completa a nota.
Mesmo com as dificuldades financeiras, Andreia foi uma das poucas que não assinou o acordo proposto pela prefeitura. Segundo ela, o documento oferecia o valor de um salário mínimo mensal enquanto Thayane estivesse paraplégica. Além disso, previa o tratamento da menina no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Haddad (Into), da rede pública federal, além de uma soma que Andreia não pode divulgar.
“Fiz uma contraproposta pedindo apenas o tratamento da minha filha. Não quero dinheiro. Hoje ela recuperou alguns movimentos da perna esquerda, apesar de não sentir nenhum dos dois membros inferiores, mas não tem mais nada que o Into possa fazer por ela”, afirma a mãe, que diz ter pesquisado na internet sobre tratamentos em outros países como Estados Unidos, Portugal e Itália, e quer que a filha tenha acesso a outras possibilidades. “Estou bem porque estou viva, mas mal porque não estou recebendo o tratamento adequado”, diz a adolescente.
Filha nas costas
“A minha filha andava, não pediu para viver essa vida. Não pediu para estar da forma que está. Nasceu perfeita, nunca precisou tomar remédio e hoje vive tomando vários em cima de uma cadeira de rodas. O mínimo que ela merece é respeito”, alega Andreia, que acompanha o sonho diário de Thayane voltar a andar. “Ela só fala nisso. Assiste a vídeos do massacre na internet toda noite porque ela aparece em um trecho andando. Ela gosta de se ver andando. Diz que foi para lá andando e saiu carregada”, conta.
Segundo Andreia, a filha alterna momentos de determinação com profunda depressão. “Ela oscila muito. Tem dia que está para baixo, tem dia que está radiante, numa alegria que contagia todo mundo. Mas aí, quando ela vê todo mundo fazendo as coisas, se arrumando, aí já viu”, diz ela, que ganhou uma bolsa em uma academia de ginástica. Uma pessoa ficou sensibilizada ao saber que todos os dias Andreia leva a filha nas costas quando precisa subir ou descer os lances de escada da casa de três andares onde a família vive.
“Para eu malhar e criar resistência. Porque tem dia que não aguento e quem sobe é a minha filha de 12 anos, a Tamires. É cruel. Hoje tenho saúde, mas e amanhã? Como ela fica?”, indaga Andreia, diante de um vão na parede de sua casa que seria destinado a um elevador. Ela conta que foi convidada a participar de um programa de TV, e que, na ocasião, ao saber que a prefeitura iria apenas adaptar o banheiro da casa para Thayane, a apresentadora anunciou que uma dupla sertaneja iria dar a reforma completa para a família.
Entretanto, quando o programa acabou, o governo municipal teria entrado em contato oferecendo toda a reforma. Segundo agentes da prefeitura, R$ 90 mil seriam empregados na obra. Diante da informação, como se tratava de um imóvel com terreno pequeno e dois lances de escada, Andreia sugeriu que usassem o dinheiro para comprar um imóvel térreo, do mesmo valor, o que foi negado. “Foi aí que eles disseram que iriam colocar um elevador, só que elevador quebra e precisa de manutenção. Não tenho esse dinheiro. Mesmo assim aceitei e no final das contas não instalaram o elevador”, conta Andreia.
Prefeitura “em diálogo permanente”
Confrontada com as informações e questionamentos da mãe de Thayane, a Prefeitura do Rio, através de sua assessoria, respondeu ao iG que “entende o sofrimento de todas as famílias envolvidas na tragédia” e que desde o primeiro momento “tem estado presente e dado a elas toda a assistência”. A Prefeitura informa ainda que Thayane Tavares é “acompanhada diariamente por uma enfermeira e também recebe apoio psicológico, assim como atendimento médico domiciliar”.
Além disso, informa a assessoria, Thayane “possui um carro à disposição para todos os seus deslocamentos para consultas médicas, sessões de fisioterapia e outros serviços oferecidos pela Prefeitura do Rio”. A nota da assessoria não responde diretamente aos questionamentos da mãe enviados pelo iG, mas informa que a prefeitura estaria “em diálogo permanente com os familiares das vítimas” e que não mediria esforços “para atendê-las em suas necessidades”.
Certeza de vitória
“Ela estava aonde? Dentro do colégio estudando. Não estava no sinal vendendo bala, não estava no baile funk dançando, não estava no cinema. Ela estava estudando para ter um futuro, para tentar ser alguém, para ser uma pessoa melhor e, como cidadã brasileira, ela não está tendo o direito de ter um tratamento digno”, afirma Andreia.
Segundo Andreia, o defensor público que cuida da causa não acredita que ela irá conseguir que a Prefeitura do Rio junto com o Governo do Estado paguem pelo tratamento particular de Thayane. “Ele disse que a prefeitura não vai aceitar o acordo. Mas eu sei que vou ganhar. Pode demorar um tempo, mas vou conseguir porque não estou pedindo nada demais. Quero apenas dignidade, tratamento, para que ela recupere o direito de ir e vir”.
Bom humor
Os percalços do dia-a-dia não tiram totalmente o bom humor da dupla. Para entreter a filha, entre as três sessões semanais de fisioterapia e as consultas médicas, Andreia ensina a ela danças que tem aprendido na academia e Thayane diz que ainda irá ensinar a mãe os passos certos. “Faço um monte de palhaçadas e ela diz que estou ridícula. Então peço que me ajude e não é que ela consegue rebolar na cadeira de rodas, além de ter passado a dançar na fisioterapia? Tiro foto e até filmo”, conta a mãe animada.
Mas o sorriso no rosto some quando Andreia recorda a manhã da tragédia. “Ela me chamou duas vezes para se despedir e me chamou de chata. Eu disse: ‘Chata é você. Vai com Deus’. E aconteceu isso”, relata, emocionada. A mãe diz que encontra conforto na atitude positiva da filha. “Embora seja muito difícil você ter uma vida normal e hoje se ver em cima de uma cadeira de rodas, impossibilitada de muitas coisas, me dá um conforto saber que ela está com a cabecinha boa”.
Sobre a filha continuar assistindo aos vídeos do massacre, a ex-comerciante diz que conversou com as psicólogas que atendem a menina e que o comportamento é considerado natural: “Falaram que ela vai querer ver, ter curiosidade, querer entender por que aquilo aconteceu. Ela às vezes me pergunta por que ele fez isso, só que ninguém sabe”.
“O medo continua”
Mesmo convivendo diariamente com as sequelas dos disparos, Thayane não tem raiva de Wellington. “Ela fala que não consegue. E ela lembra de tudo, viu todas as colegas morrerem”. Um ano depois, Andreia avalia que a tragédia afetou toda sua família. “Minhas outras filhas mudaram, estão muito agitadas. A Tainara, que era muito magrinha, engordou bastante. Ela e, especialmente, a Tamires, estão agressivas. A Thayane acaba precisando pedir muitas coisas, como um copo d´água, algo que está no banheiro, e todas fazemos. Às vezes as meninas esquecem e falam para ela levantar. Elas não se acostumaram”, conta.
Quando o assunto é a escola, Andreia balança a cabeça desanimada. Thayane voltou a estudar na Tasso, mas não se sente à vontade na escola e tem tido seu rendimento comprometido. “Ela fez uma prova de matemática esses dias e acertou apenas uma questão. Era a matéria preferida dela junto com educação física. Às vezes ela diz que não consegue acompanhar porque escuta um barulho e fica lembrando com medo”, conta. “Ouço um barulho e meu coração dispara, o medo continua. Tento superá-lo a cada dia que passa, mas ele vai sempre continuar”, completa a adolescente.
Tamires também continua estudando na Tasso da Silveira. “Porque hoje medo nós temos em tudo quanto é lugar, em qualquer escola. Onde menos esperávamos que fosse acontecer alguma coisa aconteceu. A Thayane disse que pensava que a escola era uma segunda casa e que acabou passando por aquilo tudo lá dentro. Eu fico sem palavras”, desabafa Andreia, que não sabe definir qual sentimento tem por Wellington.
“Ele foi um monstro, não tem o que falar. Não sei se posso dizer que sinto raiva ou o que é que sinto porque não sei nem expressar exatamente que sentimento é esse que tenho por ele. Mas se eu estivesse naquele momento vendo a minha filha tomar os tiros que tomou, ou ele ia me matar ou eu ia matá-lo porque, sem medo nenhum, com muitas garras, eu ia para cima dele. Como mãe, eu ia”.

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